1917 (2019): no campo de batalha

Drama de guerra incessante carrega o espectador por entre as trincheiras para experimentar os horrores da Grande Guerra.

Na infância, Sam Mendes ouvia de seu avô Alfred H. Mendes, um oficial que serviu ao exército britânico durante a Primeira Guerra Mundial, histórias sobre soldados que carregavam mensagens. Nelas estavam escritas informações de valor inestimável que poderiam decidir o futuro de um confronto. Com o passar do tempo o pequeno Sam se deu conta de que o ‘vô Alfred’ também era um dos protagonistas daquelas histórias e inspirado por elas, o agora veterano e premiado diretor de “Beleza Americana” realiza o arrebatador “1917“, desde já uma obra-prima digna de figurar na mesma prateleira de filmes como “Apocalypse Now“, “Nascido para Matar“, “Platoon“, “O Resgate do Soldado Ryan“, “Guerra ao Terror“, “Dunkirk“, entre outros expoentes do gênero. Munido de excelência técnica e um personagem central determinado o filme transporta o espectador para o inferno da guerra e no meio da lama, dos tiros e as trincheiras amontoada de corpos o faz experimentar as várias sensações de estar naquele lugar.

Acompanhamos aqui a saga dos cabos Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay), que são convocados pelo General Erinmore (Colin Firth) para uma árdua missão: levar uma mensagem urgente até o pelotão comandado pelo Coronel Mackenzie (Benedict Cumberbatch), que está a poucas horas de cair numa armadilha fabricada pelo exército alemão e que pode resultar num massacre de 1.600 soldados. No entanto, para cumprirem seus objetivos, esses homens terão que arriscar suas vidas atravessando o perigoso campo inimigo. No instante em que decidiu adaptar o genuíno relato de seu avô para a telona, Mendes tinha em mente apenas uma forma de executar que pudesse mergulhar a audiência no caos da guerra, e num trabalho minucioso junto ao seu staff a fez. Para narrar a jornada desses dois cabos, ele recorre a uma ferramenta cinematográfica das antigas, que usada em prol da narrativa e não apenas como muleta estética, e capaz de oferecer um processo de se sentir parte do projeto.

Entra em cena o mestre Roger Deakins, que produz toda a cinematografia usando luz natural (exceto na estonteante sequência noturna, na qual fez uso de sinalizadores para ilustrar as chamas, num processo que segundo o próprio Deakins necessitou inclusive da construção de maquetes onde pudesse simular o tempo de luz que um sinalizador oferece desde o lançamento). Conduzido pela ideia de Mendes, que fundamenta a produção em dois eficientes planos-sequência, levando o espectador a uma experiência imersiva dolorosa e edificante, e de posse de sua câmera, ele vai além das ações de protagonistas dentro de um game. Há momentos em que, com a ajuda de operadores de câmera camuflados em fardas, amplia seu raio de filmagem sobre os devastados campos de guerra ou o céu povoado por embates aéreos. Em outros, passeia com a câmera sobre as águas, corpos enlameados, além de circundar seus personagens, proporcionando passagens mais observadoras, chocantes e silenciosas.

Companheiro de Deakins e Mendes nessa empreitada, o montador Lee Smith – vencedor do Oscar na categoria por seu belíssimo trabalho em “Dunkirk” -, é o responsável por costurar o filme e mantê-lo coeso até o fim. Sua função consiste ainda em manter a ilusão de continuidade do plano-sequência quando na verdade alguns cortes sutis devem ser realizados. Além das sequências onde o corte fica claro, repare na elegância que pula de um plano para o outro seja no momento em que entra no labirinto escuro das trincheiras ou quando recorre a closes nas fardas dos oficiais. É um exercício feito a perfeição que merece reconhecimento e revela a natureza técnica irretocável do projeto, que conta ainda com o fantástico design de produção de Dennis Gassner (vencedor do Oscar por “Bugsy“). Incumbido de conceber toda a atmosfera daquele aterrorizante período, mostra que alguns animais como, por exemplo, cavalos e cachorros eram transformados em meras decorações para as terras assolada por mortos em que ratos reinavam soberanos.

De nada serviria sua técnica bem executada se não houvesse uma figura interpretada com puro coração. Para finalizar sua máquina arrojada, Mendes traz um protagonista fervoroso e disciplinado. Entregue ao personagem, o jovem George MacKay – que traz consigo um currículo com mais de 30 créditos entre eles o sensacional “Capitão Fantástico” -, cuja ausência no Oscar não encontra justificativas, serve ao seu Cabo Schofield com determinação e por vezes exibe o terror da guerra em seus olhos. Não se trata de uma interpretação piegas o que a torna ainda mais verdadeira diante de todas as provocações pela quais ele passa. Seguir os passos dele durante quase 2h nos faz perceber o quão obstinado e comprometido com o filme o ator está. MacKay funciona como nosso avatar nesse jogo perigoso de fases complicadas. Empregando uma trilha sonora onipresente de Thomas Newman, “1917” é mais uma passo adiante no cinema moderno, uma prova de seu poder e inventividade, que nos coloca imersos num período horrível da história.

Direção de Sam Mendes. Com George MacKay, Dean-Charles Chapman, Colin Firth, Benedict Cumberbatch e Mark Strong.

NOTA: 9,5

Deixe um comentário